Muitos corredores são, por natureza, criaturas de hábitos regulares. Correndo sempre nas mesmas rotas, com a mesma frequência de passadas, com os mesmos calçados, no mesmo horário do dia. Correr sempre as mesmas 4 milhas (N.T: 4 milhas = 6,43 km) ao redor da cidade significa que a superfície nunca muda. Essas criaturas de hábito podem dizer onde se encontra cada armadilha, arbusto, buraco na estrada ou rachadura na calçada. Se isto lhe soa familiar, aproveite esta oportunidade para aprender como explorar novas superfícies pode ser benéfico para fazer com que qualquer corredor se torne mais forte biomecanicamente.
Antes de comparar terrenos é importante considerar alguns fatores relativos a como o corpo reage com o solo. É de conhecimento comum que a corrida tem um impacto no sistema musculoesquelético. Massa corporal, forma e a superfície da corrida irão desempenhar um papel em quanto de impacto resulta no corpo. Em um sentido mais literal, o corpo “colide” com o solo com uma força que é 4-5 vezes o peso corporal do corredor a cada passo, mais ou menos 180 vezes a cada minutio (McMahon & Greene, 1979).
A quantidade de energia necessária para o balanço das pernas em uma passada é otimizado ao manter a fase de apoio curta (quando um pé está em contato com o solo) e empurrando o solo de maneira reativa (Bosch & Klomp, 2005). Músculos reativos essencialmente reciclam energia entre as fases como uma função da elasticidade muscular e em última análise diminuem o custo energético em longo prazo. Tempo de contato com o solo mais longos tem um custo energético maior e menos reciclagem. É exigido do corpo absorver o choque com o solo, que reverbera através de tendões e músculos com um recuo elástico, permitindo que se inicie o movimento para frente desejado, como se as pernas tivessem molas.
Não somente as pernas agem como molas naturais, mas o solo também pode se comportar dessa forma. O grau de deformação ou “retorno” que uma superfície possui, irá determinar a velocidade de transferência entre o pé e o solo. Superfícies mais duras possuem um retorno de energia mais rápido, permitindo ao corredor cobrir a distância de maneira mais rápida. Superfícies mais maleáveis resultam em um tempo de contato mais longo, como resultado de suas propriedades flexíveis, que é diretamente relacionado com uma taxa de transferência mais lenta e portanto, o corredor cobre uma distância menor e de maneira mais lenta. As pernas do corredor, que funcionam como molas, precisam ajustar a rigidez de acordo com a deformidade do terreno. Isto é necessário para permitir uma duração adequada do contato do pé com o solo para produção de velocidade, e dessa forma o menor custo de demanda de oxigênio. Em outras palavras, o corpo necessita uma flexibilidade média para ser economicamente eficiente.
Pense em um solo duro como uma mola rígida e um solo mole como uma mola frouxa; isto deve ajudar com a visualização enquanto esmiuçamos as diferentes superfícies.
Asfalto
Pode parecer que a superfície mais rígida forneceria a plataforma mais estável para empurrar o solo e portanto, permitir a maior velocidade. No entanto, o asfalto é tão denso que deminui a habilidade das pernas ganharem força vertical a partir de seu retorno (Freehery, 1986). Na realidade, o impacto do asfalto sobrepõe a energia elástica de retorno das pernas, resultando em uma neutralização do retorno positivo. Enquanto os músculos estão ocupados amortecendo a força do impacto, a estrada rapidamente retorna a energia elástica de volta para a perna, os músculos estão mau preparados para recebê-la. O corpo tenta diminuir o impacto desacelerando a fase de aterrissagem; este movimento de freio resulta em um tempo de contato mais longo e menores velocidades. Interessante é que se verificou que o concreto tem a maior força de impacto e o menor retorno entre todas superfícies, devido a sua densidade (Feehery, 1986). Mais, uma análise de ossos e articulações em um estudo em que ovelhas caminharam no concreto por um período de 2 anos, resultou em placas de osso subcondral e osso cortical espessados, resultando em um osso menos elástico e pouca capacidade de absorção de choques (Feehery, 1986). Em termos clínicos, este é um caso clássico de osteoartrite prematura. Pelo bem de suas articulações, quando possível, é melhor atingir o pavimento ao invés da calçada a fim de reduzir o impacto.
Grama
As superfícies de grama são comparáveis ao asfalto em termos de retorno de energia elástica na forma de propulsão vertical (Feehery, 1986). O ligeiro “retorno” da superfície e sua textura requerem que as pernas trabalhem mais para alcançar o mesmo esforço exercido no asfalto, embora sem o impacto. Isso faz com que a grama seja uma grande ferramenta de treinamento para atletas buscando construir força de membros inferiores, enquanto mantém os riscos de lesão baixos. Desde que a grama seja bem cuidada e o terreno razoavelmente nivelado, alguns atletas se aventuram a correr descalços, recebendo o bônus extra do fortalecimento do pé e tornozelo. Um corredor com tornozelos frágeis deveria ter cautela quando treinar na grama, incorporando gradualmente o treino descalço na sua quilometragem semanal.
Areia e Neve
Ambos, tempo de contato com o solo e comprimento da passada aumentam em superfícies muito maleáveis, como areia e neve, com a consequente diminuição da velocidade do corredor (McMahon & Greene, 1979). A neve pode ser escorregadia e frequentemente vem acompanhada com estradas congeladas, fazendo com que não sejam aconselháveis para corredores iniciantes. Areia fofa fornece uma sessão de exercícios de forte resistência para os músculos das pernas, especialmente as panturrilhas, com mínimo impacto nas articulações. Se o corredor for propenso à lesões no tendão calcâneo, é melhor evitar correr descalço e de preferência correr na areia mais compacta e menos fofa, perto da beira do mar por exemplo. A inclinação das dunas na praia, especialmente perto da água, é algo a se considerar também; corra em ambas direções igualmente a fim de evitar desenvolver desequilíbrios musculares, ou simplesmente encontre uma praia de superfície mais plana. Correr na areia definitivamente fornece uma sessão de exercício com alto gasto energético e rápido desenvolvimento de fadiga, por isso é melhor usar essa superfície para corridas de curtas distâncias.
Trilha
Corrida em trilhas é um grande desafio, oferecendo variedade no terreno e no cenário para quebrar a monotonia dos quilômetros. A demanda da superfície irá depender da trilha. Trilhas largas de terra são tipicamente planas e livres de obstáculos. Enquanto que trilhas de via única mais estreitas são tipicamente para corredores mais avançados, que desejam um percurso que exija mais agilidade. A natureza da trilha requer que o corredor se adapte rapidamente à rochas, raízes, cursos d’água, curvas fechadas, animais inesperados e árvores/galhos caídos. O solo em si é de baixo impacto. No entanto, um clima adverso pode fazer com que a corrida adquira condições perigosas; deve se ter cuidado ao final do outono ou após uma tempestade de inverno, onde folhas e neve podem esconder buracos, rochas e raízes (N.T: Se refere à América do Norte).
Correr em trilha usa uma variedade de movimentos horizontais e oblíquos para alcançar uma colocação ideal do pé o que significa que o recrutamento de músculos estabilizadores é maior do que uma corrida em linha reta, retardando o início da fadiga nos grandes grupos de músculos das pernas (Farango, 2009). O recrutamento de músculos adicionais significa que a demanda por oxigênio também aumenta, por isso correr em trilha parece mais difícil para o sistema cardiovascular do que em outras superfícies. A “rotação das pernas” aumenta (N.T: “Leg turnover” é o termo usado no original) já que é necessário uma alta reatividade e ajustes calculados precisam ser feitos para se manter a mesma cadência através do percurso; isto ajuda com o desenvolvimento da velocidade e eficiência da passada dentro e fora da estrada.
Esteira
A esteira é quase sempre a primeira escolha do iniciante pela corrida mais segura e controlada. Um estudo verificou que as forças na superfície plantar do pé, uma medida de risco de lesão, foi mais baixa na corrida em esteira (Hong, Wang, Li & Zhou, 2012). Devido à assistência da esteira rolante no movimento durante a fase do contato do pé (fase de apoio do pé) na passada da corrida, uma velocidade constante pode ser alcançada com menor força propulsiva e menos impacto comparado com qualquer outra superfície (Hong et al., 2012) (N.T: Em relação ao impacto, as esteiras mais modernas permitem um impacto ainda mais reduzido, devido a um sistema de amortecimento à ar, em que se pode introduzir o peso do corredor fazendo com que ela regule um sistema de amortecimento individualizado). As superfícies das esteiras rolantes variam conforme a marca e modelo, mas em geral fornecem uma boa superfície para corridas de baixo impacto e para reabilitação de lesões.
Pista
Popular nos circuitos cobertos de atletismo universitário e profissional, pistas “preparadas” levam a fama de conter uma quantidade otimizada de rigidez para produzirem um pico de retorno de energia, e portanto, maiores velocidades. Verificou-se que uma superfície que é 2 a 4x mais rígida do que a perna do corredor pode produzir o maior retorno de energia elástica (Feehery, 1986). Estas pistas, como as das universidades de Harvard e Yale são tipicamente construídas de madeira com cobertura de borracha e superfície inclinada para um efeito centrífuga, produzindo alguns dos tempos mais rápidos do mundo.
Considerando tudo, a variedade de superfícies disponíveis, têm a função de fornecer benefícios para qualquer estratégia de melhora que o corredor esteja buscando. Mesmo que a velocidade não seja um foco específico do plano de treinamento, a forma como estas superfícies sobrecarregam o corpo de diferentes maneiras, adicionam um desafio único para o corpo enfrentar e também servem como uma forma de recuperação para músculos sobrecarregados.
O ponto de partida é simples:
Novas superfícies fornecem uma oportunidade para músculos acostumados sempre ao mesmo tipo de esforço experenciarem uma sensação diferente (“sobrecarga” diferente). Onde há uma sobrecarga muscular, existe uma confusão muscular que leva à adaptação, acompanhada por uma construção de força. Para todas as criaturas de hábitos arraigados por aí, façam um favor ao corpo: Saia fora da mesma rota batida e busque outros terrenos.
Referências
Bosch, F. & Klomp, R. (2005). Running: Biomechanics and exercise physiology applied in practice (pp.181-188).Maarssen, Netherlands: Elsevier.
Farango, S. V. (2009). Women are naturals for trail running. Triathlon Life, 12(4), 54-55.
Feehery, R. V. (1986). The Biomechanics of running on different surfaces. Clinics in Podiatric Medicine and Surgery, 3(4), 649-659.
Hong, Y., Wang, L., Li, J. X., & Zhou, J. H. (2012). Comparison of plantar loads during treadmill and overground running. Journal of Science and Medicine in Sport, 15(6), 554-560.
McMahon, T. A. & Greene, P. R. (1979). The influence of track compliance on running. Journal of Biomechanics, 12, 893-904.